[artigo publicado originalmente no nº 1 da revista NORTE.AR., em maio de 2020]
A crise de saúde pública originada pela propagação do vírus Corona arrastará consigo uma crise económica. É ainda cedo para estimar a sua dimensão, mas parece seguro que se tratará de uma situação de enorme severidade.
1. INTRODUÇÃO
O combate a essa crise económica impõe, no imediato, que se adotem medidas no sentido de minimizar a perda de capacidade produtiva instalada. A prioridade é, pois, evitar que, por questões de tesouraria, empresas economicamente viáveis sejam sacrificadas. Num segundo momento, logo que a pandemia cesse, importará adotar medidas tendo em vista reativar a utilização plena da capacidade produtiva sobrevivente. Por fim, num terceiro momento, importará relançar o investimento de modo a recuperar tecido económico que tenha sido perdido, e estimular o crescimento, a produtividade e a competitividade da economia portuguesa.
Todas estas medidas exigirão financiamento. Neste contexto, muitas vozes têm apelado à União Europeia (UE), clamando pela emissão de Eurobonds ou de Corona Bonds, procurando com esta última terminologia atribuir-lhe uma natureza mais circunstancial, e dar nota de que se trata de mutualizar os custos da crise e não dívidas passadas.
Na Europa, muitos políticos, incluindo chefes de governo, têm dado a entender que, se não houver um avanço no processo de integração com recurso a alguma mutualização de dívida, a continuidade da UE poderá estar em causa. Este discurso não só é perigoso, dado que mina a confiança coletiva dos cidadãos europeus nas vantagens da integração, como é ilegítimo, dado que nos tratados até agora celebrados nenhum Estado-membro se comprometeu com essa mutualização. Tem ainda o inconveniente de descurar as vantagens que o Euro e o atual nível de integração originam. Importa, pois, notar que não se pode responsavelmente colocar em cima da mesa uma escolha entre o avanço para a mutualização e o fim da UE.
Mesmo tratando-se de discurso político, e como tal visando posicionamento negocial, não deixa de ser perigoso, sobretudo se não for acompanhado de um discurso complementar que alerte a opinião pública para que o fim do Euro e da UE simplesmente não são opção.
Além disso, ao apelarmos à solidariedade dos parceiros europeus, sem simultaneamente pensarmos no que nos compete fazer para sair da crise e para fundar na resposta a essa crise uma transformação estrutural da economia e da sociedade portuguesa, perdemos legitimidade para reivindicar apoio da UE.
2. A IMPORTÂNCIA DA MOEDA ÚNICA E DA INTEGRAÇÃO EUROPEIA
a) A importância da Moeda Única
Muitas vozes têm sustentado que a ausência de moeda própria limita a capacidade de os Estados combaterem crises conjunturais. Em geral, baseiam-se no argumento de que com desvalorizações competitivas é possível recuperar rapidamente por via do aumento das exportações e redução das importações. Sustentam ainda que, tendo política monetária própria, é possível reduzir as taxas de juro e estimular o crescimento económico sempre que a economia nacional de tal necessite.
Em primeiro lugar, importa notar que em nenhum momento da vida do Euro a política monetária do BCE foi contrária ao necessário para relançar a atividade económica em Portugal. Em nenhum momento, precisávamos de política monetária expansionista e esta faltou.
Em segundo lugar, importa notar que sem a moeda única, quando em 2011 entrou a Troika em Portugal, o Escudo estaria sujeito a um ataque especulativo sem precedentes na nossa história, e registaria certamente uma desvalorização descontrolada. Para defender a moeda nacional não restaria ao Banco de Portugal alternativa à subida das taxas de juro, numa altura em que a recuperação económica pedia o movimento inverso. Na realidade, a pequenos países com moeda própria, num contexto como o atual em que o controlo de movimentos de capitais é impossível, não resta senão escolher entre política cambial e a política monetária. Todavia, pertencendo à moeda única foi-nos possível ter estabilidade cambial e usar a política monetária no combate à crise.
Acresce que foi possível ganhar competitividade internacional rapidamente, sem recurso a desvalorização cambial.
A redução dos rendimentos do trabalho – inevitavelmente originando perda de rendimento disponível, tal como decorreria da desvalorização e consequente aumento do preço dos bens importados - permitiu obter celeremente ganhos de competitividade. Há, pois, instrumentos alternativos à desvalorização cambial para relançar as exportações.
Adicionalmente, parece hoje claro que o início do fim da chamada crise das dívidas soberanas teve lugar, em 26 de julho de 2012, quando o então Governador do BCE Mario Draghi proferiu a célebre expressão “‘whatever it takes”. O discurso de Draghi criou as condições para acabar com a crise da dívida pública.
A política monetária do BCE reduziu substancialmente os prémios de risco em obrigações emitidas pelos tesouros europeus. Foram muitos os milhões de euros poupados pelos diferentes governos em juros, além de que foi possível regressar muito mais rapidamente aos mercados do que teria sido possível sem esta ação do BCE.
Por fim, note-se que o programa de compra de dívida do BCE traduz-se, em certa medida, em monetização dos défices públicos. Com a moeda única foi possível fazê-lo, e provavelmente continuará a poder ser feito, sem originar inflação. Com moeda própria, num país como o nosso, a monetização do défice público teria como consequência inevitável a subida generalizada dos preços, com todos os inconvenientes daí decorrentes.
Parece, pois, claro que pertencer à moeda única nos trouxe vantagens inequívocas na última crise económica que tivemos de enfrentar. Assim será, também, espera-se, no combate às consequências económicas da COVID19.
b) As Vantagens da Integração Económica
Também as vantagens da União são imensas. Bastariam a paz e a liberdade de circulação de pessoas alcançadas na Europa para justificar a sua existência. Todavia, as vantagens do mercado único são igualmente inequívocas. Qualquer livro de integração económica explica que esta proporciona, além de outros efeitos: eficiência na afetação dos recursos e aumento da produtividade; maior possibilidade de alcançar o pleno emprego dos fatores de produção; maior possibilidade de garantir o crescimento económico e social; a obtenção de economias de escala devido ao alargamento da dimensão do mercado e, para usar parcimónia no elenco das vantagens, maior circulação da inovação e dos avanços tecnológicos.
Além dos benefícios estruturais da integração económica, convém lembrar que, no que respeita a resposta a conjunturas adversas, na crise de 2011, a UE não nos faltou com apoio, ainda que não fosse o que desejaríamos.
Teria sido preferível que tivesse mostrado capacidade para prestar apoio sem o FMI, da mesma forma que há muito de negativo a apontar à intervenção da Troika. Todavia, importa reconhecer que se nenhum funcionário público deixou de receber o seu salário e se o Tesouro não deixou de cumprir com as suas responsabilidades, isso se deveu também às instituições europeias.
c) O que, e como, exigir da UE?
A criação das Eurobonds e/ou o reforço do orçamento da Comissão Europeia implicam, inevitavelmente, que impostos de cidadãos de uns países venham a ser usados em benefício dos cidadãos de outros países. Há, inevitavelmente, um efeito de redistribuição. Enquanto adepto de maior integração económica eu sou favorável a esse movimento, se ele for acompanhado de instrumentos políticos que permitam um verdadeiro escrutínio democrático pelos cidadãos europeus. Esta discussão pode e deve ser feita, mas não no quadro de “ou há solidariedade ou a EU não serve para nada”. Esta discussão pode e deve ser feita, com urgência, mas sem colocar dúvidas na opinião pública sobre a importância dos progressos já alcançados na integração europeia.
Além disso, essa discussão pode e deve ser acompanhada ou seguida de uma discussão sobre se os ganhos da partilha de uma pauta aduaneira e mesmo da partilha de uma moeda única estão a ser equitativamente repartidos.
A discussão tem, pois, de ser mais ampla. No quadro da normal de evolução da União temos de ponderar se a manutenção de países com superávites sistemáticos na balança comercial é compatível com o espírito e os tratados da União, e se tal situação é sustentável sem um reforço da política orçamental comum.
É também num quadro de estabilidade e de normal negociação entre os parceiros, que deverá discutir-se a adoção de uma política fiscal comum. Faz pouco sentido que se crie riqueza num país e se vá pagar impostos por essa riqueza a outro país da UE.
Faz também pouco sentido que se comece e não termine a União Bancária. Foi transferida para o BCE a supervisão das principais instituições bancárias europeias, mas continua a não existir um fundo de garantia de depósitos comum.
É preciso igualmente reivindicar da UE uma política externa comum, e em particular face à China. A presente crise veio colocar em evidência uma dependência económica inaceitável da Europa (mas também dos EUA) do sector industrial chinês.
Por fim, e mais importante, foi vergonhosa (como a própria líder da Comissão Europeia já reconheceu) a ausência de apoio à Itália. Todavia, a ausência de solidariedade de umas nações perante as outras em situações de crise humanitária é vergonhosa com ou sem UE. Donde, o que importa discutir no quadro da UE é de que forma as suas instituições têm de estar preparadas para, em cumprimento da sua obrigação, e não por solidariedade, apoiar os Estados-membros em situações similares futuras. É bom que esse debate e as respetivas ilações sejam tiradas de forma a que uma segunda vaga de COVID 19 não venha a apanhar a Europa novamente impreparada para lidar com a situação.
Tudo isto e muito mais é exigível da UE e das suas instituições. Todavia, tal deve ser colocado, com urgência, no âmbito do processo de construção europeia, e nunca na lógica da “solidariedade do Norte para com o Sul” e muito menos do, muito perigoso, “ou há Eurobonds ou a EU não serve para nada”.
3. RESPONSABILIDADE SOCIAL
A discussão das Eurobonds e do papel da UE pode ter o efeito pernicioso de impedir ou obstaculizar uma discussão interna sobre o que nos compete fazer. Evitar que a crise de saúde pública se prolongue muito no tempo e que, consequentemente, a perda de tecido produtivo seja significativa, está em grande medida nas nossas mãos. Recuperar da crise no imediato também depende muito das medidas que o país adote e da atitude de cada um dos seus cidadãos. Por exemplo, se não existirem condições para que, como habitualmente, sejam imigrantes temporários a fazer as vindimas do Douro, não será digno de reivindicar qualquer tipo de solidariedade europeia um país que deixe as uvas nas videiras.
Acresce que esta é uma boa oportunidade para lançar as reformas estruturais que têm sido adiadas. Assim, por exemplo, é bom que os portugueses tomem consciência que se tivéssemos um nível de endividamento público e privado bem mais baixo do que aquele que temos, estaríamos muito mais tranquilos e muito melhor preparados para enfrentar esta crise. Ainda a título de exemplo, é bom que os portugueses pensem nas consequências dos desincentivos à poupança que sucessivamente têm sido adotados. A taxa de poupança registada nas últimas duas décadas devia envergonhar a nação e preocupar os governos, que nada têm feito para a estimular.
Com níveis de poupança acrescidos esta crise seria enfrentada mais serenamente. Muitos outros exemplos de reformas adiadas poderiam ser apontados.
4. SíÍNTESE CONCLUSIVA
Neste artigo exprimo a opinião que, sendo desejável e urgente que a UE evolua para níveis crescentes de comprometimento mútuo dos seus membros, e que as instituições europeias se tornem mais eficientes para prevenir e remediar crises como a atual, é perigoso transmitir à opinião pública a ideia de que “sem mais solidariedade” da UE esta “não serve para nada”, ou de que se trata de uma questão de “Norte” contra o “Sul”. Debater os caminhos de evolução e aprofundamento da UE sem que a opinião pública tenha consciência do quão positivo é já hoje aquilo que foi construído na Europa é indesejável e arriscado.
Por fim, alerto para que a discussão da atuação das instituições europeias no combate à crise e da evolução da UE não pode servir para que se deixe de ter consciência de que a resposta à crise é, antes de mais, responsabilidade nossa e está (em grande medida) nas nossas mãos.
Igualmente apelo a que a crise seja o pretexto para lançar as reformas estruturais de que o país precisa e tem vindo a adiar, bem como para refletir sobre as consequências de opções tomadas no passado que hoje nos colocam em situação bem mais vulnerável do que aquela em que gostaríamos de estar.
Carlos Alves
Professor da Universidade do Porto.
Presidente do Conselho Académico da Porto Business School.
Board Member do SEDES- Associação para o Desenvolvimento Económico-Social